Se você assistiu “O Último Jedi” penúltimo capítulo da saga Star Wars, precedido pelo igualmente falho “A Ascenção Skywalker”, talvez se lembre da quantidade de “PayOffs” que o diretor/roteirista Rian (Ruin para os mais íntimos) Johnson resolveu colocar na trama. O que é PayOff? Basicamente é uma cena dramática que justifica tudo o que a precedeu; o resultado necessário de uma complicação para a qual o público foi preparado. Aliado a isso, há o termo, do inglês, “subverting expectations” — subvertendo as expectativas daquilo da qual o público foi preparado. Então, um PayOff onde Luke Skywalker, símbolo da esperança, herói de uma geração, se transforma em um velho covarde e ignorante, isolado em uma ilha enquanto a galáxia se explode, é, digamos, subverter as expectativas de quem acompanhou Star Wars pelos últimos quarenta anos! Mas não se engane, destruir expectativas não é tão simples. É necessário um roteiro esperto que consigo manter tudo que a precedeu no mínimo coerente. Não é o caso do que fizeram com Star Wars; mas é o caso do novo do Tarantino!
Era uma vez… em Hollywood, assim, como num conto de fadas, reimagina fatos e inventa outros. Até aí, nada novo para quem segue o diretor de Bastardo Inglórios. Quem saiu do cinema, após a sessão de O Último Jedi e pensou: “tantos payoffs com o sentido de subverter expectativas, para quê? Desnecessários, irritantes, toscos, contraditórios em relação a décadas de lore e idiotas!” talvez tenha criado certa rejeição com o termo. Qual a última vez que vimos tantos em uma única exibição? Vinte anos atrás com os Wachowskis? Sessenta anos com Hitchcock? O fato é que já não se fazem mais reviravoltas como antigamente, já não se brinca com o espectador como antes. Muito fácil ofender, e como resultado: muito fácil afundar a carreira.
Tarantino tem fama de violento, cartunesco e com fetiche em pés de moças. Kill Bill, À Prova de Morte, exemplos não faltam. Afinal, não é que ele esconda. Seus filmes, são sobre filmes, música, sempre uma compilação, quase que um Best Of daqueles personagens ou eventos. Contados através da imaginação fértil do diretor.
Era uma vez… em Hollywood é, não só um Best Of sobre um evento ou sobre personagens; mas é também um compilado de PayOffs, e há muito, mas muito truques para quebrar as expectativas de quem assiste; anos atrás, Tarantino disse em uma entrevista, que pensou durante a primeira exibição de A Better Tomorrow II (John Woo): “Se não tiver um ótimo PayOff no fim, nada disso fará o mínimo sentido!” — De fato, John Woo fez um filme baseado em seu clímax, arriscado, mas que entrega tudo aquilo que foi construído até aquele momento. Já considerava o diretor fazer um filme inteiramente baseado em momentos com seus fins invertidos?
Em Cidade dos Sonhos (2002) David Lynch já brincava com a situação, a atriz ensaiando para um papel teste na Los Angeles da fantasia, era um ensaio vergonhoso, em um papel com falas tolas, que culminava em um situação ainda mais tola, as coisas se encaminhavam para um desastre, apenas uma ponta de um Iceberg, do que é a trama geral do filme, trivial alguns podem pensar, mas a trivialidade que a precede, é exatamente onde a atuação real nos leva, no filme em questão, Lynch brinca com os bastidores assustadores de Hollywood, e a cena em questão… sem spoilers aqui, mas é uma forma de “subverter expectativas”, onde o espectador fica entre a cruz e a espada.
A Hollywood de Era uma vez…, muito bem construída por sinal, é não só um reflexo daquilo da qual o cinema americano um dia já foi; mas também um reflexo da atual. Lembra do movimento #MeToo? Alavancado depois das acusações de assédio contra Harvey Weinstein? Político, antes de mais nada, era um movimento com um propósito de união contra o patriarcado maléfico de homens poderosos que abusavam de pobres e inocentes garotas que se aventuravam nos sets de filmagem de Los Angeles. O filme abraça, que parece abraçar a causa, destrói todas as expectativas daqueles preparados para por o filme na prateleira dos apoiadores da causa, em um único momento, capaz de deixar a mais tranquila das feministas com sangue nos olhos! Mais uma vez, sem spoilers aqui…
Não para por aí, há uma grande construção, tensa, com violência psicológica, para no fim, resultar em risos de euforia. É como rir depois de ter sido passado pra trás diante de uma pegadinha feita por um amigo. Inaceitável na hera dos ofendidinhos, mas Tarantino não segue nenhuma regra, eis a mágica de seus filmes. Seja nos enredos malucos contados sem nenhuma amarra convencional; ou seja no politicamente incorreto, em pleno 2019. Um feito. Talvez seu maior feito, seja colocar toda a galera desses movimentos nas filas de seus filmes, e os fazerem dar risadas de si mesmo.
O filme resgata a acidez, do que um dia era conhecido como cinema. Sem explicações chulas e explícitas sobre seus significados; afinal, mais uma vez, Tarantino fez um filme, sobre filmes. As milhões de referências, perdidas para quem não é cinéfilo, fã do diretor, ou que não acompanha Westerns, são numerosas. E o fato de esse filme ter sido bancado por um grande estúdio, talvez seja seu maior mérito.